domingo, 22 de maio de 2011

Colonização de Corpos e Almas: Índios do Norte/Noroeste do estado do RIO

Tânia de Vasconcellos

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie (BENJAMIN, 1994, p. 225).

Na medida em que um novo ciclo de colonização se inicia, potencializam-se e reproduzem-se as relações de poder, relações políticas e formas de produção e organização da vida. Há, no entanto, um acréscimo de força que ganha contornos com o caráter épico e aventureiro da empreitada.

É um processo que precisa ser compreendido como resultante das carências e contendas existentes na matriz, às quais a colonização pretende dar respostas. São tentativas de “retomar, sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o semelhante” (BOSI, 1992, p. 13).

A região Norte/Noroeste do estado do Rio de Janeiro era, antes da chegada do homem branco, habitada por indígenas puris, coroados, corobós e botocudos. Atacados pelos coroados, os puris se tornaram nômades, vagueando pela região da serra da Mantiqueira e pelo vale do Paraíba.

Restos dessa horda fixavam-se no começo do século passado, nos sertões que hoje são terras dos municípios de Santo Antônio de Pádua e Itaperuna.

[...] Ainda no começo do século passado, restos de corobós, coroados e puris catequizados por missionários estiveram aldeados em Santo Antônio de Pádua, São Fidelis e Itaocara (BUSTAMANTE, 1971, p. 20).

Diferentes fontes indicam que, a partir de 1702, já havia na região algum trabalho de catequese, ainda que tais investidas não tenham imediatamente frutificado. O aldeamento dos índios catequizados, no entanto, só viria a se consolidar no século XIX.

A região – um dos últimos santuários onde se refugiaram os índios do Norte Fluminense – começou a ser invadida por estranhos. [...] A progressiva ocupação por fazendeiros, das áreas de perambulação dos índios, e a crescente demanda nas fazendas, de força de trabalho, exigiam a execução de uma política capaz de retirar os índios de suas terras de origem e de concentrá-los em aldeias especialmente erguidas para esse fim (FREIRE e MALHEIROS, 1996, p. 15).

As estimativas da época indicam que a população puri contava com aproximadamente 1.500 indígenas habitando as matas da serra das Frecheiras, entre os rios Pomba e Muriaé nos primeiros anos do século XIX. Os puris desenvolviam uma agricultura de subsistência em roçados comunitários, plantando, por exemplo, milho, abóbora, banana e pescando, caçando e coletando frutos silvestres.

O curato de Santo Antônio de Pádua foi criado em 1812, com o objetivo de viabilizar a catequese do povo puri por frades capuchinhos de origem italiana. A força de trabalho dos índios catequizados foi empregada na extração e comercialização da madeira de lei na região:

Área imensa, coberta de densas florestas, abundante em madeira de lei. [...] Vieram a oferecer vasto comércio lucrativo e eram conduzidas em balsas que desciam pelos rios, guiadas por índios já domesticados em demandas dos portos de Campos e Macaé, onde eram vendidas (BUSTAMANTE, 1971, p. 20).

O grupo do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro desenvolveu, em 1996, um levantamento nos arquivos paroquiais de Santo Antônio de Pádua, cobrindo o período de 70 anos que separa o batismo documentado do primeiro puri e a morte, em 1902, da última índia puri.

Os batismos se iniciaram mesmo antes da construção da capela. Foram realizados nas residências. O batismo (voluntário ou compulsório) consistia na troca do “nome do mato” por um nome cristão. No entanto, não era apenas essa a questão. O projeto que se colocava era uma mudança progressiva nas formas de produção da existência e é exatamente isso que por meio dos dados paroquiais de batismos, casamentos, óbitos, os pesquisadores buscaram alcançar.

Os dados levantados demonstram que as relações intertribais foram afetadas. Tribos originariamente inimigas começam a aparecer justapostas em registros de casamentos (intertribais) e em certidões de batismo.

Os indígenas não apenas vão sendo destribalizados, como também a sua identidade se dilui. Se os registros de batismo indicam claramente o grupo de pertencimento do indígena, os registros de óbito muitas vezes assinalam apenas “índio”, até finalmente não ser mais possível distingui-los. A mestiçagem com negros, pardos e mamelucos criou, por vezes, situações inesperadas como, por exemplo, o caso da índia Romana, filha da escrava Gertrudes, nascida em 1862, antes, portanto, da Lei do Ventre Livre, o que implica a predominância da sua situação de escrava sobre sua condição indígena.

Ou ainda o caso do índio puri João da Mata, proprietário do escravo Tito Criollo (FREIRE e MALHEIROS, 1996, p. 15-16).

O batismo do primeiro puri foi realizado em 1822. Nos 70 anos que se seguiram, os puris passaram por um processo de destribalização, miscigenação e perda progressiva de identidade até desaparecerem completamente. A última puri, Joaquina Maria, morreu em 1902, aos 90 anos.

Joaquina Maria entrou no século XX, solitária, com seus 90 anos presumíveis, mantendo sua identidade indígena. Nasceu puri, apesar de sua “cor parda”. Viveu puri embora destribalizada e viúva de marido desconhecido. Morreu puri, mesmo recebendo os sacramentos dentro do ritual romano. Na sua infância escapou milagrosamente das epidemias responsáveis pelas mortes incontáveis de crianças indígenas, embora os registros de óbitos apontem surpreendentemente a “morte natural” como “causa mortis”. Talvez porque fosse considerada normal a morte de crianças indígenas, tal como foi assinalado nos livros do Arquivo da Paróquia de Santo Antônio de Pádua (FREIRE e MALHEIROS, 1996, p. 19).

A colonização não pode e não deve ser compreendida como um processo de relações puramente objetivas. Ao lado dos modos operacionais de organização da sociedade, existem mecanismos mais sutis e, por isso mesmo, mais penetrantes, formas que capturam a alma humana em vínculos não tão facilmente removíveis. O colonizador trouxe também consigo os seus “mortos que não devem morrer”. Alfredo Bosi distingue, na construção desses conceitos, as idéias de condição colonial e situação colonial.

Por sistema entendo uma totalidade articulada objetivamente. [...] Quanto ao termo condição, atinge experiências mais difusas do que as regularidades da produção e do mercado. Condição toca em modos ou estilos de viver e sobreviver. [...] Condição traz em si as múltiplas formas concretas da existência interpessoal e subjetiva, a memória e o sonho, as marcas do cotidiano no coração e na mente, o modo de nascer, de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar, de rezar, de cantar, de morrer e ser sepultado (BOSI, A. 1992, p. 26-27).

A escravidão é uma marca indelével na cultura brasileira, na existência social e psicológica do nosso povo. A escravidão, tanto indígena quanto negra, é tema escasso na obra de Bustamante. No entanto, é certo que já havia população escrava por ocasião da fundação do arraial. O mesmo arquivo paroquial que revelou os batismos indígenas aponta o batizado de negros escravos.

Texto retirado da tese de doutoramento CRIANÇA DO LUGAR E LUGAR DE CRIANÇA: TERRITORIALIDADES INFANTIS NO NOROESTE FLUMINENSE apresentada por Tânia de Vasconcellos, em 2005, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense.

5 comentários:

Luiz Carlos Martins Pinheiro disse...

Amigo Hélcio

Como deve ser do conhecimento público, Logradouros de Miracema, publicou o Capítulo Nação Puri, em seu Volume III, mostrando a importância dos puris não apenas no Noroeste Fluminense e, em especial em Miracema, onde deixaram não só restos de sua existência, como descententes, segundo confessa o Amigo José Carlos. Está ao dispor de quem queira, gratuitamente, pela Internet.

Nele se comprova por foto que grupo de puris ainda vivia, em Tombs, MG, fronteira com Porciuncula, RJ, no final do século XIX.

É hora da região homenagear os puris não só com monumentos, mas destacando-os em sua história. O que os lembra em Miracema?

Abraços, saúde e Paz de Cristo.
Luiz Carlos/MPmemória.

AngelMira disse...

Uma excelente postagem que mostra aspectos históricos da terrinha que quase sempre são ignorados.

cavour disse...

Ultima das remanescentes da Tribo Puri.
saudacoes a todos. Eu sou neto de indios Puris tupiniquim coroados Maragya etc... estes que habitavam as matas de Muqui-Vitoria do Espirito Santo. Minha Avo genorina da Conceicao ( acredita se que tenha pego este sobrenome por ser da Regiao conceicao de Muqui ) ou de alguma familia de Italiano na Epoca... e minha Familia sao de Muqui meu Avo foi Escravos alforriado e tiverao 10 filhos e mais outros 8 com outras esposa/as. ? da parte de minha avo ela morreu pelos anos de 1966 pois a conheci por esta idade quando vivia em sao cristovao rio de janeiro. vio a falecer de cancer no estomago.
igualmente como minha Mae.
resta ainda a filha mais velha que seria /E' descendente direto de ulgumas desta tribos.
e eu torco para que seja Puri mas como saber > ???????que tipo de exame e testes levam a alguma conclusao.? onde encontro registros documentos e certifcados de nascimento ou registros de posses desta Epoca??
ou mesmo registros de Batisados pois minhas Tias forao todas registradas em Muqui quando criancas. Atualmente me encontro no japao Tokyo informacoes sao bemvindas
obrigado.
msn; neyous@live.jp
skype:andre-shogun

Anônimo disse...

ola todos por favor alguem que tenha conhecimento sobre: lista de nomes e geral informacoes que venham a ajudar a identificar familiares Indios e nao indios por favor postem seus achados . sera grande recursos para todos e para humanidade.
pois nos osmos os Incontaveis nao fazemos partes de registros do IBGE ou de outro orgao classificador.
agradeco a todos.

Unknown disse...

Olá , alguém que tenha fotos algo sobre os índios que estiveram aqui em Miracema