segunda-feira, 2 de maio de 2011

Bolsa Família parte agora para a inserção produtiva
Chico Santos
Valor Econômico - 02/05/2011

"A extrema pobreza, se medida muito cuidadosamente, ela praticamente já acabou no Brasil." A afirmação pode despertar incredulidade em quem se apega exclusivamente à observação empírica, mas vem de alguém que há mais de duas décadas dedica-se a estudar os problemas da miséria e da pobreza no Brasil e a medir sua evolução, o economista do Ricardo Paes de Barros, professor da PUC-Rio e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mestre em matemática (Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada), doutor (Universidade de Chicago) e duas vezes pós-doutor (Universidades de Chicago e Yale) em economia, com dezenas de trabalhos publicados, Paes de Barros aceitou deixar momentaneamente a trincheira acadêmica para assessorar o governo da presidente Dilma Rousseff no esforço para dar um salto de qualidade nas ações de combate à pobreza no país.

Como secretário de ações estratégicas da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE) trabalha na formulação da segunda etapa do Bolsa Família que pretende ir além do simples alívio da pobreza extrema, preparando os beneficiários para a inserção produtiva na economia do país. Nessa tarefa, terá papel preponderante um novo personagem que será introduzido no programa, o "agente social", encarregado de despertar nas famílias assistidas o desejo de andar com as próprias pernas, sem risco imediato de perder a ajuda material que o governo já lhe dá.

Em sua primeira entrevista como ocupante do cargo, Paes de Barros disse ao Valor que, por suas contas, considerada uma linha de extrema pobreza de um dólar por dia de renda familiar per capita e incluindo também nessas contas as rendas não monetárias, como a agricultura de subsistência, por exemplo, o Brasil possui hoje menos de 5% de miseráveis. A questão é que, na medida em que o país cresce e enriquece, essa linha de pobreza já não serve mais, precisa de novos parâmetros, assim como é feito nas nações mais desenvolvidas, tornando o combate à carência uma espécie de moto contínuo. Por conta dessa nova realidade que observa, Paes de Barros avisa que o Bolsa Família tornou o pobre mais exigente, em economês, elevou o "salário de reserva" do mercado brasileiro - o preço da mão de obra mais barata ficou mais caro. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: Como o governo está trabalhando a estratégia de erradicação da pobreza prevista pela presidente Dilma Rousseff?

Ricardo Paes de Barros : Bem, o governo tem um grupo de ministérios que está sendo responsável por desenhar o programa. E, obviamente, para que isso seja gerenciável, é preciso ter um número relativamente limitado de ministérios. A Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) não é parte desse grupo. O que eu posso dizer são linhas gerais do que está acontecendo. Eu não consigo é adiantar detalhes, talvez até não seja o momento de divulgar esses detalhes porque eles ainda estão sendo trabalhados.

Valor: Em linhas gerais, então...

Barros: Eu estou tranquilo porque não sei os detalhes e por isso não vou censurar a minha conversa. Eu não sei mesmo! Em linhas gerais, talvez tenhamos duas coisas importantes para qualificar: se você medir a extrema pobreza cuidadosamente, muito cuidadosamente, ela praticamente já acabou no Brasil. Ela, com certeza, está abaixo de 5% (da população).

Valor: Isso usando qual linha de pobreza? Um dólar por dia de renda familiar per capita?

Barros: É, um dólar, mas um dólar bem arbitrado. Com base na Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE eu consigo descobrir quanto custa atender as necessidades nutricionais de uma família brasileira, certo? Se você fizer essa conta com a Pnad (a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, também do IBGE), o resultado é diferente. Agora, os pobres produzem uma renda não monetária muito grande. O cara que produz para autoconsumo não tem renda monetária nenhuma. Então, na Pnad ele tem renda zero. O cara que é engenheiro que perdeu o emprego diz (na Pnad) que tem renda zero, mas na verdade ele tem renda, ele não é extremamente pobre, certo? Quando você pega a POF, vê isso no detalhe. Você sabe o gasto da família no último mês. Um engenheiro não vai ter gasto zero. Ele vai ter um certo gasto porque ele está usando a poupança dele ou algo assim. O agricultor familiar na Ilha do Bananal está produzindo lá a batata, o arroz dele e está consumindo. Na hora que você leva tudo isso em consideração, vai dar certamente abaixo de 5% (a pobreza). Agora, às vezes perguntamos: mas os Estados Unidos não acabaram com a extrema pobreza ainda? Não, porque a extrema pobreza não é uma coisa absoluta. A gente começa a subir a linha. Agora, acabar com a extrema pobreza enquanto fome, enquanto renda abaixo do mínimo que você precisa para alimentar sua família, isso o Brasil já está em vias de acabar, embora zerar ninguém nunca irá conseguir.

Valor: A linha de um quarto de salário mínimo para extrema pobreza e meio salário mínimo de renda familiar per capita para pobreza seria um ponto a perseguir?

Barros: Não. O IBGE tem o mapa da pobreza que tem linhas cuidadosas lá. Essa linha um quarto de salário mínimo é uma avacalhação. Porque o salário mínimo está aumentando em termos reais... Tem várias maneiras de você ser mais generoso independente da política de salário mínimo. A política de salário mínimo é a política de salário mínimo. Você não tem que vincular tudo a ela.

Valor: Qual o parâmetro ideal para se elevar a linha de pobreza no Brasil?

Barros: Essa é que é a grande discussão. Eu acho que os parâmetros tradicionais que a gente usa dão uma linha hoje para o Brasil muito baixa. Mas não tem uma metodologia muito clara em nenhum lugar do mundo para aumentar a generosidade dessa linha, entendeu?

Valor: Talvez enriquecer a POF com o efeito Titãs (a gente não quer só comida...)

Barros: Isso é o que te leva a uma linha de pobreza. A linha de pobreza seria uma coisa que incluiria todas as necessidades básicas. Quer dizer, talvez a gente tenha que sair do combate à extrema pobreza e ir para o combate à pobreza que ainda continua muito alta no Brasil. Aí o IBGE tem também as linhas, é mais ou menos duas vezes a linha de extrema pobreza.

Valor: Não seria necessário uniformizar as linhas para se ter um combate mais bem focado?

Barros: Se a extrema pobreza no Brasil vai ser erradicada, ela tem que ser erradicada com a linha do IBGE, com a linha do Marcelo Néri, ou com a linha do Ipea, ou a da Cepal, com qualquer linha. Agora, não vale linha indexada. Nesse sentido, não é tão importante definir uma linha. Mas é importante ter uma linha para ter um número nacional e todo mundo saber. Agora, indo para a erradicação, a política em si, a gente tem que fazer uma diferenciação, que às vezes fica confusa, entre alívio da pobreza e, digamos, a verdadeira erradicação estrutural da pobreza. O que é isso? O Bolsa Família, no curto prazo, ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é mais claro, eles aliviam a pobreza de alguém. Quer dizer: você é pobre, está sem recursos eu vou lá, lhe transfiro uma quantidade de recursos e você, em certo sentido, continua pobre mas não está sentido-se pobre porque você agora tem essa renda. Mas continua sem capacidade de gerar uma renda para satisfazer suas necessidades.

Valor: Ganhou o peixe, mas não pescou?

Barros: Exatamente. Não dá para a gente ensinar a pescar ao cara que não comeu o peixe, que não se alimentou, certo? Então, a estratégia é dar o peixe para o cara ficar bem alimentado e então lhe ensinar a pescar. A gente está falando de expandir a capacidade produtiva do cara, o que pode ter vários nomes, desde "porta de saída", "inclusão produtiva", que agora parece estar mais popular, até "expansão das oportunidades". As duas tarefas são fáceis de falar. A primeira é fácil de falar e o Brasil mostrou que é possível ser feita com uma certa eficácia. O segundo passo é que talvez seja mais fácil falar do que fazer: você chegar ao pobre e tentar transformar a capacidade produtiva daquele pobre. Uma dificuldade para esse segundo passo é a seguinte: é que no caso do primeiro, você chegou lá, concluiu que o cara é pobre, transfere uma determinada quantidade de dinheiro para ele independente do problema dele. O cara está tantos reais abaixo da linha da extrema pobreza eu vou transferir uma determinada quantia para ele. Não é preciso saber porque ele está abaixo da linha da pobreza. Agora, para transformar a capacidade produtiva dele, o tipo de oportunidade que eu vou dar vai depender dramaticamente de onde ele está, o que ele faz... se é um agricultor que produz para autoconsumo na área rural do Nordeste a atenção que eu tenho que dar é completamente diferente do cara que é de uma família pobre no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

Valor: No interior do Nordeste, por exemplo, há famílias que de tanto tempo mergulhadas na extrema pobreza têm até dificuldade para pensar alternativas de vida. Para elas, o Bolsa Família é meio a solução final. Como tratar esses casos?

Barros: Você tem duas maneiras de transferir renda: uma é transferir renda para a pessoa e se ela trabalhar eu não tomar seu dinheiro. A outra coisa é dizer para o cara o seguinte, que é um dos problemas da focalização: olhe, se você trabalhar e for bem pago, você vai deixar de ser pobre e eu vou deixar de lhe dar esse dinheiro porque esse dinheiro é só para pobre. Isso é, aparentemente, o desincentivo da focalização. Esse argumento que você está colocando tem a ver com o fato de eu dar um dinheiro para a pessoa, o cara dizer que está recebendo R$ 200 todo mês e dizer que não vai mais trabalhar porque R$ 200 está bom. O que estou querendo dizer é o seguinte: embora em alguns casos possa acontecer, as pessoas não estão percebendo que trabalhar é uma ameaça a perder o Bolsa Família. Eles estão percebendo muito mais o Bolsa Família como uma renda para eles que é mais ou menos intocável enquanto os filhos deles estiverem na escola. Todo mundo que estudou o Bolsa Família no Nordeste percebe um pouco isso, é que na verdade não tem esse desincentivo, embora se possa encontrar casos isolados. Tem gente que diz no Nordeste que não tem mais mão de obra, porque ninguém quer mais trabalhar. É preciso perguntar para ele o seguinte: você já experimentou aumentar o salário? É claro que o Bolsa Família aumentou o que nós economistas chamamos de salário de reserva. Para isso que o Bolsa Família serve, para o trabalhador ser mais exigente. Agora ele tem uma base, está com a sobrevivência garantida. Isso é bom. Se o empresário não aumenta o salário para o cara aceitar, é problema dele.

Valor: Eu vi no Nordeste um acompanhamento muito preocupado em fiscalizar as condicionalidades, mas não vi preocupação em ajudar os beneficiários a encontrarem caminhos para ganhar a vida...

Barros: Exatamente, isso é o Bolsa Família. Essa preocupação toda com condicionalidades é importante. O Bolsa Família tem dois papéis: aliviar a pobreza hoje e melhorar a educação e a saúde da próxima geração, reduzir a pobreza da próxima geração, o que depende completamente do cumprimento das condicionalidades. Você está absolutamente certo: o Bolsa Família não tem porta de saída. Mas isso é o que o programa novo vai fazer. Isso é o adicional do programa novo.

Valor: Por intermédio dos agentes sociais?

Barros: Exatamente. A grande dificuldade agora é que fiscalizar condicionalidade é fácil porque é igual para todo mundo. A inserção produtiva é específica para cada família.. Esse agente terá um trabalho muito mais complexo a ser feito.

Valor: Ele também vai precisar ser mais bem remunerado, mais bem preparado. Qual o perfil e o custo desse novo personagem.

Barros: No Rio Grande do Sul eles têm um programa que faz isso para criança. Não tenta fazer inclusão produtiva de adulto, mas faz visita domiciliar para promover o desenvolvimento da criança, e custa R$ 500 por mês. Pega gente com educação média completa e fazendo a universidade. E a missão social desse agente (o federal) se pagaria mesmo que ele tivesse um salário muito mais alto. O que ele vai poupar de gasto público com programa sociais é enorme.

Valor: Eu estou partindo do princípio que esse agente deve ser bem remunerado.

Barros: Se você quiser remunerar ele bem, remunere com o valor de mercado, paga o que o mercado paga. Eles são os embaixadores da política social brasileira. A gente quer que o cara que vai se relacionar com as famílias seja um bom embaixador, então ele tem que ser bom, tem que ser pago com um salário de mercado. Agora, o que estou querendo dizer é o seguinte: Se você quiser pagar abaixo do mercado, tem um monte de gente querendo fazer isso por salários até abaixo do mercado, porque é uma atividade que tem um apelo afetivo-emocional muito grande. No Rio Grande do Sul há um agente para cada 25 famílias.

Valor: Para o agente social do Bolsa Família a ideia seria um número também assim, de um para 20 ou 25 famílias?

Barros: A gente está pensando em um para 50 famílias. No Rio Grande do Sul eles fazem uma visita semanal. No nosso caso a gente vai precisar de visitas quinzenais ou semanais no começo e depois a gente vai esparsando essas visitas.

Valor: Em que prazo esses agentes serão implantados?

Barros: O prazo é hoje ou ontem. A estratégia é botar todo mundo na rua. A gente tem agentes de saúde que já estão na rua. Temos os Paifs (sigla do Programa de Atenção Integral à Família) que funcionam nos Cras (Centros de Referência de Assistente Social) que todo município tem. Tem o cara da extensão rural, tem ONGs que podem dar apoio. Então, imagino que a solução imediata vai ser coordenar o esforço de todo mundo e a partir daí, ir construindo um agente específico.

Valor: Qual o perfil profissional desse agente?

Barros: Ele vai passar por um treinamento específico para desenvolver essa habilidade. Agora ele pode ser psicólogo, assistente social, enfermeiro, educador, pedagogo... Psicólogo e assistente social seriam os mais naturais. Assistente social seria o cara!

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