segunda-feira, 9 de novembro de 2009

EU QUERO PAZ

Osmar Perazzo Lannes Jr

“Alá-lá-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô / Mas que calor-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô.!” O Joaçaba adorava essa música. Acompanhava-a com prazer no trompete e até se lamentava por não poder sair cantando, dançando e pulando como aquela multidão ali embaixo. Quando ele via a alegria da rapaziada de todas as idades transformando em movimento sincronizado a melodia e o ritmo que saíam da banda, entendia como é que, Carnaval sim, outro também, ele não resistia ao convite sempre renovado do Tião para tocar na banda dele nos bailes noturnos do clube. Quando eles entravam no ginásio, adaptado para salão de baile, ele sempre sentia um frio na barriga, uma mistura de orgulho, seriedade e entusiasmo, a certeza de que ia fazer um trabalho muito importante. Enquanto subia os degraus da arquibancada em direção ao palco de madeira improvisado perto do canto da quadra de futebol de salão, ele se sentia como um médico cardiologista entrando no centro cirúrgico. Às onze em ponto, então, os primeiros compassos de “Cidade Maravilhosa” informavam que a banda do Tião pedia licença, mas que, nas próximas cinco horas, as tristezas do mundo iam ser barradas na entrada do clube.
O discreto sinal do Teco Cachaça fez o Joaçaba se lembrar de que estava na hora de dar a deixa para a mudança de música. Era um intervalo de quarta, prolongado por uns dois compassos, geralmente um dó-fá, porque o Tião cismava de tocar em fá maior. Era a deixa, por exemplo, para os bumbos reduzirem o ritmo, se entrava uma marcha-rancho.
“A Estrela Dalva/No céu desponta/E a Lua anda tonta/Com tamanho esplendor”. Joaçaba não se cansava de “Estrela Dalva”. Tudo nela era bonito: o ritmo, a harmonia, a letra. Uma pequena e eterna obra-prima, pensava. Como todos os anos, concordou consigo mesmo que nunca mais se fizeram músicas de Carnaval como as marchinhas e marchas-rancho dos anos 30, 40, 50 e, vá lá, concedeu, 60. Anos 70, só uma ou outra, a não ser... a não ser... esta, pensou – coração batendo mais rápido, enquanto o bumbo ralentava, junto com a deixa, agora em ré maior –, a minha música, o ponto culminante de todos os bailes de Carnaval.
“Bandeira branca, amor/Não posso mais/Pela saudade que me invade/Eu peço paz”.
Esse era o momento do que Joaçaba chamava de “viagem”. Porque era mesmo uma viagem. Quando começava “Bandeira branca”, ele deixava seu trombone no piloto automático, saía voando daquele coreto mambembe e fugia de volta para o mesmo lugar, a pracinha da sua Miracema natal, para o mesmo momento, o Carnaval de 1970, e a mesma pessoa, sua Celeste adorada. Nos três, quatro minutos que durava a marchinha, ele voltava a ser o Roberto, filho do seu Zé Joaçaba da quitanda, um rapaz de 18 anos, às vésperas de se mudar para a casa dos tios em Niterói, para terminar o Científico e realizar o grande sonho de seu pai humilde, ser aprovado no Vestibular para a Faculdade de Medicina da Universidade Federal. Aquele Carnaval era também a sua festa de despedida da cidade onde vivera desde que nascera. E, mais ainda, a despedida de uma existência simples, mas boa, dividida entre o trabalho na quitanda do pai e os estudos no ginásio da cidade. Sabia que, a partir de agora, tudo ia ser muito mais difícil.
Tinha sido justamente quando a banda de Miracema tocava “Bandeira branca” que ele literalmente tropeçou na Celeste. Alguma sinapse cósmica deve ter acontecido para que, no mesmo instante, os dois se abraçassem e saíssem pulando juntos. Haviam crescido os dois ali na cidade, haviam estudado juntos, mas até então pouco haviam se falado. Só que, nos últimos anos, ele percebera que ficava todo desconcertado na presença dela, que ela o perturbava por motivos que ele não compreendia. Ele descobriu que a achava maravilhosa. Não que ela fosse um tipo de beleza. Claro, ela era bonita, elegante, charmosa. Mas havia um ingrediente invisível e indefinível que a tornava magnética para ele.
E, naquela noite, as primeiras palavras que pronunciaram juntos, ele com o braço direito sobre o ombro dela, ela com o braço esquerdo enlaçado nas costas dele, haviam sido justamente aquelas: “Bandeira branca / Eu peço paz”. Dançaram, cantaram e pularam até de madrugada. Ele a levou até em casa naquela Quarta-feira de Cinzas. Viram-se novamente em todos os dez dias seguintes. Beijaram-se pela primeira e única vez na hora da partida dele, na rodoviária da cidade. Prometeram se escrever. Prometeram se esperar. Prometeram se amar.
Mas tudo fora muito mais difícil para o Roberto do que ele pudera imaginar. Arrumou um emprego em Niterói durante o dia, para ajudar nas despesas da casa dos tios, ia ao colégio noturno e estudava de madrugada. As cartas para Celeste foram se espaçando, assim como as respostas dela, as viagens de fins de semana para Miracema foram sendo substituídas por viagens aos feriados e, depois de algum tempo, pela ausência. Aquele amor acabou de morte morrida, lenta e dolorosa – como um coma, pensou ele, com tristeza.
Mas, curiosamente, ele nunca se esquecera daquela moça lindamente despenteada, confetes sobre os ombros revelados pelo tomara-que-caia da fantasia de pirata. E o beijo que trocaram na rodoviária havia sido, depois de tanto tempo, o único beijo de que ele se recordava em toda a sua vida, o modo como ele segurara o rosto dela com as duas mãos e o puxara para o seu, o modo como ela se apertara contra ele e retribuíra o seu carinho.
Agora, já perto dos sessenta, todo ano ele esperava pela música, todo ano ele ansiava pela viagem que o reunia por três, quatro minutos ao seu primeiro e efêmero amor.
Hora da deixa. Dó-fá de novo. “Mamãe, eu quero/Mamãe, eu quero/ Mamãããããe, eu quero mamar”. O salão parece tremer. Despediu-se mentalmente da Celeste, linda pirata de 17 anos, ombros revelados pelo tomara-que-caia de cetim, serpentinas coladas ao short vermelho, desaparecendo no limbo dos amores perdidos. Até o ano que vem, resignou-se.
Mas eis que... Meu Deus, assusta-se ele, não é que tem uma pirata parecida com a Celeste, ali, parada bem perto da cerca? E não é que ela está olhando para cá ? Joaçaba pára de tocar e afasta lentamente o trompete da boca, que vai se abrindo no exato ritmo em que seus olhos vão se arregalando. Não parece a Celeste. É a Celeste, grita o Joaçaba. Os músicos só percebem que há algo errado quando ele joga o trompete no chão e, com uma agilidade inesperada, pula para o salão, dois metros abaixo. Alguém grita. Começa a correria. Joaçaba olha em volta, atordoado. Onde está ela ? Ali ! E sai correndo, esbarrando, derrubando, atrás da menina de 17 anos, que já saiu do salão e vai em direção às piscinas. Ninguém consegue detê-lo. Perto da entrada do vestiário, Joaçaba finalmente alcança a moça.
Ela se vira. Eles se olham. “- Celeste?”, gagueja o sexagenário. “- Sou eu”, responde ela. “- Mas... como é que pode? Você ainda é uma menina”, ele grita em desespero.” Ela sorri irônica: “- Fiquei te esperando, Roberto. Você não me disse que ia voltar ?”
O tumulto às suas costas indicou ao Joaçaba que ele ia ser agarrado pelos seguranças, que já se aproximavam correndo. De repente, uma sinapse cósmica. “- Vem, Celeste”, ele gritou, puxando-a em um arranco para si.
Seus lábios se tocaram e suas bocas se abriram. Eles agora estavam juntos. Estavam na rodoviária de Miracema de novo. Mas, desta vez, ele não ia embarcar no ônibus. Não. Ele ia ficar. Eles iam se casar, iam construir uma vida juntos. Ele não ia perder a Celeste pela segunda vez. Uma eletricidade fez o seu corpo se sacudir todo.
* * * * *
“- Ele consegue ouvir a gente, Doutor ?”, perguntou a filha, olhos lavados, fisionomia abatida. “- Ninguém sabe com certeza”, respondeu o médico, tom de voz compreensivo. Era a sua rotina na UTI. “- Não se sabe”, repetiu. “- A corrente mais aceita defende que durante o coma o paciente delira, que sonha, mas não se tem certeza.”
A mãe abraçou a moça com ternura. “- Vem, querida. Amanhã a gente volta.”
As duas encaminharam-se para a saída. Antes de chegar à porta da UTI, porém, a filha voltou-se para olhar uma última vez para o seu pai, o Dr. Roberto Joaçaba, cardiologista de renome nacional. Não teve certeza, mas ela podia jurar que nesse momento viu seu pai tremer todo, como se uma eletricidade o tivesse perpassado, ao mesmo tempo em que seus lábios machucados e ressequidos formavam os contornos de um sorriso de felicidade.

Fonte: http://literaturadecamara.sites.uol.com.br/DESAFIO7DO2.htm

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