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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Colonização de Corpos e Almas: Negros Escravos do Norte/Noroeste do Estado do RIO

Tânia de Vasconcellos

A escravidão em Santo Antônio de Pádua e arredores não difere substancialmente da condição de escravatura encontrada em todo o Rio de Janeiro no período do café.

Bustamante esforça-se por reafirmar no breve trecho dedicado à escravidão que “nem todos os senhores eram maus”, mas a comparação que a seguir estabelece para descrever a situação dos negros em Pádua é com a criação de animais, aproveitando para destacar os privilégios dessa última.

Os negros em geral eram tratados como outra qualquer espécie de criação. À noite, terminado o trabalho, eram recolhidos e o alimento, angu de fubá, feijão e legumes, era servido parcamente. Alguns, uma vez ou outra, o mais certo aos domingos, deixavam-lhe escapar um pedaço de carne seca. Pela manhã, mesmo antes dos primeiros albores, os feitores abriam-lhes as senzalas, ao mesmo tempo em que outros encarregados soltavam o gado.

Com uma diferença notável, este ia pastar em liberdade, beber águas frescas, regalar-se nos banhados. Mas os negros não; dali, em turmas dividiam para os diversos misteres, eram conduzidos, sempre o feitor à vista. Não havia negro doente; negro não tinha esse direito. [...] O amor, o afeto, esses sentimentos comuns a todos não lhes eram reconhecidos. Arrancavam-lhes os filhos, os companheiros de uma vida de sofrimentos, sempre que lhes oferecia um bom negócio (BUSTAMANTE, 1971, p. 151-152).

O braço escravo movia a estrutura que fazia jorrar a riqueza do café. Peculiar, entretanto, é a relação que se estabeleceu nessa região entre a condição escrava e a música. A aristocracia rural dos períodos áureos do café não poupava meios para tornar mais confortáveis as suas casas-grandes. Ela foi responsável pela criação de grupos musicais, bandas e corais organizados com escravos.

Tais conjuntos apresentavam-se na fazenda e, principalmente, nas festas religiosas. Algumas dessas bandas alcançaram tradição, deram origem a outras que se mantêm até os presentes dias em atividade (MIS, 1994). Em Santo Antônio de Pádua, esse é o caso da Lyra de Arion, por exemplo. Esses grupos musicais com elementos selecionados da escravatura, tendo a música como sua principal atividade, já são encontrados mesmo quando Pádua era apenas uma freguesia.

As festas religiosas são, sem dúvida, o lugar privilegiado de apresentação desses artistas, ocorrendo por vezes a reunião de mais de um grupo musical em determinada fazenda.

Nessas ocasiões, além de executar a música de agrado dos ouvidos dos “senhores”, era-lhes permitido, provavelmente ao final da festa, executar a música e dança que lhes aprouvesse.

[...] eram bons e generosos senhores, estimados mesmo pelos cativos. Nessas ocasiões, se excediam em branduras com os negros, melhorando-lhes a bóia, facilitando-lhes as doses de parati e consentindo bailes nos terreiros das fazendas, onde a crioulada pulava no cateretê e batuque (BUSTAMANTE, 1971, p. 175).


O exercício da música, no entanto, não era suficiente para afastar esses escravos das vicissitudes a que estavam condenados todos os da sua condição. Bandas e corais modificavam-se, eram transferidos de fazenda ou, simplesmente, desapareciam com a compra e venda das “peças”: “[...] esse fazendeiro cedeu, como pagamento a um credor, uma boa parte dos seus escravos, onde incluiu os músicos” (BUSTAMANTE, 1971, p. 175).

Em 1883, segundo o relatório da secretaria do governo provincial, havia em Pádua e São Fidélis o total de 18.770 escravos. Diferentemente do que se passava em outros municípios, não se tem registro da existência de grupos abolicionistas atuando em Santo Antônio de Pádua, embora fossem ativos os de Itaocara, São Fidélis e outros da região. No entanto, alguns fazendeiros anteciparam-se à lei, dando liberdade a cativos nos anos de 1864 e 1884, mas foram casos isolados e em pequeno número. A grande maioria dos negros encontraria a liberdade em uma trajetória de resistência e insubordinação.

De 1887 em diante era tal a desordem nas fazendas que não havia mais força capaz de manter a disciplina no meio da escravatura. Os negros insubordinavam-se e fugiam aos montes para os grandes centros, onde eram acolhidos e protegidos por emissários dos abolicionistas (BUSTAMANTE, 1971, p. 148).

Muitos fazendeiros em Pádua já vinham discutindo alternativas na substituição da mão-de-obra escrava, como se pode observar nas atas da Câmara Municipal nos anos de 1884 e 1886, esse último, ano em que se autoriza a introdução de 100 famílias de agricultores portugueses das ilhas da Madeira e Terceira como colonos.

No município de Pádua, logo que a notícia da liberdade se espalhou, foram raras as fazendas que não ficaram despovoadas. Da “fazenda de Santa Maria do Bonito, nas proximidades da vila, saíram poucos. A maior parte lá ficou, construiu os seus ranchinhos e continuou trabalhando pelo sistema de agregação” (BUSTAMANTE, 1971, p. 150).


Os fazendeiros não estavam preparados para enfrentar e contornar a nova situação. A colheita do café seria em junho e havia o plantio dos outros produtos nas épocas certas. Sem o braço escravo, perderam toda a safra de café daquele ano, por não ser colhida e não plantaram os outros produtos. Os fazendeiros fizeram empréstimos, por hipoteca das terras, ao Banco do Brasil para cobrir as despesas gerais das fazendas, inclusive pagar empregados. Não podendo resgatar a dívida, entregavam as terras hipotecadas em pagamento. Assim, só na nossa região, passaram para o Banco do Brasil 80 propriedades, que ficaram conhecidas como Fazendas do Banco. Conseqüentemente houve colapso da economia principalmente nas maiores regiões produtoras de víveres do país (PICCININI, 1994, p. 2).

A cultura cafeeira de base escravista propiciou que no Noroeste Fluminense se desenvolvessem tradições, rituais e manifestações artísticas afro-descendentes. Um dos elementos mais importantes da cultura paduana e que traz a marca da escravidão é o Jongo ou Caxambu. O Caxambu é parte do patrimônio cultural de Santo Antônio de Pádua. Ao longo de 2005, foi inventariado pelos técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), tendo em vista o seu tombamento como patrimônio imaterial, o que deve ocorrer ainda no ano referido, tal como aconteceu com o samba.

Recentemente, construiu-se uma nova qualificação: o patrimônio imaterial ou intangível. Opondo-se ao patrimônio de pedra e cal, aquela concepção visa aspectos da vida social e cultural dificilmente abrangidos pelas concepções mais tradicionais. Nessa nova categoria estão lugares, festas, religiões, formas de medicina popular, música, dança, culinária, técnicas etc. (GONÇALVES, 2003, p. 24).

O Jongo é dançado e cantado. O instrumento que dá o ritmo é um tambor percutido com as mãos e escavado a fogo a partir de um tronco sólido. Na cobertura do tambor são empregadas as peles de cabrito ou garrote. Esse instrumento chama-se Caxambu. A preparação dos Caxambus (tambores) é realizada de maneira ritual e secreta, comunicada a iniciados, de geração em geração.

Em torno do Jongo constitui-se uma forma de confraria dirigida geralmente por mulheres. Em Pádua, durante muitos anos e até a sua morte, dirigiu o Jongo Dona Sebastiana Segunda. No município vizinho, Miracema, ainda está na liderança Dona Aparecida Ratinho.

Essas matriarcas espalhadas nas comunidades jongueiras são “tesouros humanos vivos”, categoria referida pela UNESCO para designar pessoas que guardam a memória de práticas e saberes ancestrais (ABREU, 2003).

Dona Sebastiana Segunda ofereceu aos pesquisadores da Fundação Estadual de Museus o seguinte depoimento, publicado no livro O Homem Fluminense:

A dança é uma “obrigação”, no dia 13 de maio, festejando-se o fim do cativeiro. Antigamente, na véspera da festa baixava-se um mastro, que o ano inteiro ficava no terreiro de sua casa e em cuja ponta figurava uma boneca “muito bem vestida”. No dia 13, uma nova “ainda mais rica” era colocada na mesma posição, devendo permanecer até o ano seguinte. A boneca representava a “rainha” (a Princesa Isabel) em cujo louvor se cantava os primeiros pontos (VIVES, 1977, p. 71).

O Jongo pode ser dançado a qualquer época, no entanto, é presença obrigatória nas festas de 13 de Maio e no dia de São Benedito. Mulheres vestidas de branco ou com suas saias floridas, turbantes na cabeça, seus muitos colares ou guias dançam em roda marcando o ritmo com as mãos. No centro da roda fica o cantor ou puxador. Ele entoa versos que os demais participantes repetem. Via de regra, os versos são adivinhas repetidas até que outro participante decifre o seu conteúdo e então tome o lugar no centro da roda em substituição ao primeiro.

Cada puxador inicia sua cantoria pedindo licença. Tal procedimento pode ser compreendido se atentarmos para o fato de que o Jongo se insere no contexto espiritual da “Linha das Almas”, segmento das religiões afro-brasileiras responsável pelo culto aos antepassados. O Jongo seria, portanto, o aspecto profano de um ritual que guarda uma parte sagrada, oculta aos não-iniciados:

“[...] observa-se a influência da umbanda, sincretismo esse percebido nas indumentárias e guias de orixá usados por participantes (FRADE, 1985, p. 70).

Para iniciar o Caxambu, pede-se licença aos santos, “São Benedito”, aos antepassados, “Papai Jongueiro”, ao terreiro onde se dança, “a Ingoma”, e, por fim, às autoridades constituídas, “o delegado”, “o cabo de ‘poliça’. Após as saudações, os versejadores desafiam-se.

Encontramos nos depoimentos de jongueiros de Santo Antônio de Pádua – RJ, a versão de que os pontos de demanda seriam, sobretudo, um desafio poético. A magia seria então uma metáfora – assim como os próprios pontos – para enaltecer a superioridade de um ou outro versador. De acordo com essa versão, amarrar alguém significa desarmá-lo, deixá-lo sem reação no meio do jongo (IPHAN, 2005).


O Caxambu evidencia contradições da condição colonial, guardando a memória de uma liberdade concedida. Presta culto às mãos brancas e libertadoras, deixando de lado a memória das lutas e resistência cotidiana do povo negro à escravidão que culminaram em uma liberdade conquistada. Um exemplo é a quadra dedicada à Princesa Isabel: “Eu pisei na pedra/A pedra balanceou/O mundo estava torto/A rainha endireitou” (VIVES, 1977, p. 71).

Visto por esse prisma, o Caxambu reafirmaria a histo
riografia tradicional: “Benditas para a eternidade as mãos daquela virtuosa e excelsa senhora, que num gesto varonil, mesmo custando-lhe a perda do ‘trono’, baniu para sempre, da opressão, uma raça sofredora” (BUSTAMANTE, 1971, p. 152).

O próprio Bustamante questiona essa liberdade ao apresentar as memórias do negro Jovino, que terminou seus dias como pedinte em Pádua. Jovino nasceu livre na Bahia. Raptado ainda moleque, foi vendido a um fazendeiro paduano. Alcançou a liberdade sem, no entanto, ser jamais libertado da miséria.

Trabalhou muito, ajudando a transformar aquelas matas em opulentas lavouras de café que, formando aquele lençol verde, de rincão em rincão, enchiam de alegria e de ouro a bolsa dos “senhores”. Depois veio a liberdade. Ficou novamente livre, mas liberdade como? Não tinha senhor, porém tinha patrão, uns bons e outros maus; a miséria era a mesma e a ordem – trabalhar (BUSTAMANTE, 1971, p. 155).

No bojo dessa contradição, contudo, o Jongo ou Caxambu, como expressão afro-brasileira produzida nos espaços das senzalas, profundamente arraigada às tradições rurais, terminou por representar um lugar de resistência da expressão da cultura negra.

De acordo com o depoimento do Professor Hélio Machado de Castro, após a morte de Dona Sebastiana Segunda, em 1995, vendo ameaçada a sobrevivência do Jongo, ele teve a iniciativa de idealizar o primeiro encontro que reuniu comunidades jongueiras do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

O movimento, hoje em sua décima edição, aproximou simpatizantes, agregou intelectuais e deu origem à Rede de Memória do Jongo, que reúne as lideranças de comunidades jongueiras ocupadas especialmente com a preservação das tradições culturais do Caxambu, mas também atentas aos demais folguedos que encontram expressão nas suas diferentes comunidades, as quais, em sua maioria, são rurais, via de regra muito pobres e desenvolvem seus trabalhos a partir de seus próprios esforços.

A ajuda externa, quando existe, é proveniente de órgãos públicos ou privados ligados ao campo da educação e cultura. É rara, pequena e pontual. A sobrevivência se dá por meio da cooperação e solidariedade próprias daqueles que, revolvendo o passado de seus ancestrais, encontram no solo da senzala objetos preciosos para ressignificar o presente.

Apesar do prestígio junto às instituições ligadas à preservação da memória e patrimônio e da atenção que vem recebendo de intelectuais e da comunidade acadêmica, o Jongo permanece percebido no contexto dos municípios como coisa de “preto, pobre, macumbeiro” e, portanto, ameaçado pela cultura da elite local.

Quando falamos em samba, jongo, candomblé, umbanda e todas essas manifestações que reconhecidamente temos como herança dos grupos afro-brasileiros, necessitamos lembrar, obrigatoriamente, que isso está ligado diretamente com o negro, com a população excluída da sociedade brasileira até hoje. A realidade é que essa é a população que sempre foi impedida de participar da construção dos destinos do país. Então temos que lembrar, sim, junto com o jongo e com as outras manifestações mencionadas, dos negros, da exclusão social, da pobreza, da falta de oportunidade de acesso à educação e ao trabalho. Devemos lembrar, ao mesmo tempo, da resistência política desses, da teimosia em dizer: mesmo que eu não tenha condições, eu vou ser alegre, eu vou rir, eu vou dançar. Precisamos lembrar que isso é um processo de luta política e não somente arte e espetáculo (IKEDA, 2005, p.)
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Acima da placa está o monumento em forma de livro, onde se lê um versículo do salmo 119: “Lâmpada para seus pés é a tua palavra”. E assim, os pés dos pretos, pobres, macumbeiros, descendentes daqueles que construíram a riqueza no café, foram convidados a dançar em outra freguesia. O cruzeiro de D. Sebastiana Segunda, em torno do qual se dava o batuque, desapareceu.

Texto retirado da tese de doutoramento CRIANÇA DO LUGAR E LUGAR DE CRIANÇA: TERRITORIALIDADES INFANTIS NO NOROESTE FLUMINENSE apresentada por Tânia de Vasconcellos, em 2005, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense (UFF).
Tânia de Vasconcellos foi professora do curso de Licenciatura em Matemática, da UFF, no município de Santo Antônio de Pádua.

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