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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Uma doença americana
Mauro Santayana - no Jornal do Brasil

Não há povos felizes, e poucas são as pessoas no mundo que se sentem em paz. Viver não é apenas perigoso: é uma aventura difícil. Sempre foi assim, mas como o passado pesa, e nos conduz, a cada época os homens se sentem mais impotentes diante das circunstâncias, que escapam de sua vontade e poder. Os Estados Unidos são o país mais poderoso, mais rico, mais adiantado do ponto de vista científico e cultural do mundo. Talvez em razão disso, a angústia de viver ali seja mais acentuada. Em seu editorial de ontem, Le Monde atribui à liberdade de portar armas de fogo os repetidos atentados – políticos em sua maior parte – nos Estados Unidos. É verdade que essa liberdade favorece os crimes, desde a morte de Lincoln até a dos Kennedy e os assassinatos em massa de nossos dias. Esta é uma das causas, mas há outras.

Um historiador de um futuro distante, se o mundo chegar a esse futuro, verá os Estados Unidos como um caso singular no conjunto das civilizações. Logo depois da independência, decidiram que, para garantir a liberdade individual e proteger o povo contra a eventual tirania do governo, todos poderiam portar armas. O direito é previsto na segunda emenda do Bill of Rights, aprovado em 15 de dezembro de 1791. É importante notar que James Madison, o redator das dez emendas históricas, colocou-a logo depois da primeira, que assegura a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Sendo necessária a um estado livre uma bem regulamentada milícia, o direito de o povo portar armas não deverá ser infringido.

O problema não está nas armas, em si mesmas. A arma é um instrumento, que tanto pode servir para o ataque como para a defesa. Em princípio só deveriam andar armadas as pessoas que tivessem pleno domínio de sua mente e de suas emoções. A proibição do uso de armas, nos Estados Unidos, não resolverá o problema dos atentados políticos. Os que decidirem matar, como decidiu o rapaz de Tucson, sempre encontrarão armas para usar. A arma é uma mercadoria, como outra qualquer, e o mercado, na sociedade norte-americana, como na do mundo em geral, prevalece sobre o Estado, a sociedade, e suas razões. Os arsenais encontrados nos morros cariocas comprovam essa verdade. Mais ainda: grande parte dessas armas só chegou aos morros por intermédio da polícia. Qualquer repórter encarregado de cobertura policial sabe como é fácil conseguir uma arma – em alguns casos, de graça.

Como lembrou Paul Krugman, em artigo no New York Times, há uma retórica de direita na imprensa e nas emissoras de rádio, tevê e outros meios de comunicação, nos Estados Unidos, contra o governo de Barack Obama e os democratas. A pregação do ódio é diária, e alimenta psicopatas como o assassino de Tucson. Não foi a sua pistola Glock que disparou contra a parlamentar democrata e matou seis pessoas, mas a instigação continuada da extrema-direita, em seu ódio contra as tímidas reformas pretendidas pelo governo de Obama.

Para nós, brasileiros, é uma séria advertência. Também aqui estamos percebendo uma orquestração da extrema-direita contra o governo que se inicia. Há um limite para a tolerância democrática. Como lembrou Marcuse, em seu ensaio sobre o tema, quando Hitler iniciou sua pregação na Alemanha, estava bem claro o que ele e seus sequazes pretendiam. A República de Weimar não soube contê-los a tempo, e dezenas de milhões de vítimas pagaram por esse descuido.

Os sinais da rearticulação da direita, no Brasil, mediante a imprensa, o rádio e a televisão, e da extrema-direita, pela internet, são evidentes. Os jornais, as emissoras de rádio e de televisão que lhes dão acolhida, ao que parece, não se lembram do que ocorreu durante o regime militar. Ou disso não querem lembrar-se.

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