Sem que houvesse imposição verbal ou escrita, as calçadas da rua Direita da Aldeia eram divididas pela própria população: os de classe social menos favorecida trafegavam do lado direito de quem desce a rua, enquanto os mais afortunados caminhavam do outro lado. Essa divisão das calçadas surgiu naturalmente, quando as pessoas se deram por si estava lá a divisão.
E assim perdurou durante muitos anos, até que num carnaval a prefeitura, influenciada pelo sucesso da festa popular do Carnaval da Bahia, montou um palanque na rua Direita, ao lado do Bar Jardinzinho, e colocou lá uma banda para tocar na sexta-feira de carnaval. E a população caiu no samba, sem perceber de que lado da rua os demais sambistas caminhavam na rua Direita.
E Zé Navalha, famoso folião da Aldeia, comentou com amigos:
- A partir deste momento ficou decretada a extinção da segregação social das calçadas desta rua. Estava aqui comigo imaginando qual seria a minha fantasia pro Carnaval deste ano. Acabei de descobrir, vou me fantasiar de “A Morte da Segregação das Calçadas da Rua Direita”.
E os amigos pediram pro Zé Navalha detalhes da fantasia. E Zé respondeu: me aguardem amanhã aqui no Bar do Jardinzinho por volta de umas duas horas da tarde que vocês vão ver.
E a ansiedade tomou conta dos amigos do Zé. Ninguém queria perder ver a fantasia dele, porque as ideias que o Zé tinha pra fantasias eram fellinianas e completamente imprevisíveis. E a notícia correu pela Aldeia.
Ainda era meio-dia do sábado de carnaval e já era grande a concentração de gente em frente do Bar Jardinzinho. Bolinha e Bradeco, que eram também exímios foliões e mestres na arte de se fantasiar, estavam lá a espera do “A Morte da Segregação das Calçadas da Rua Direita”. Às duas horas em ponto, o Zé Navalha despontou na rua Direita empurrando um carrinho de mão.
- Minha Nossa! Bradeco, é o que estou pensando?
- É, Bolinha. Do Zé Navalha você espera o quê?
- Desta vez ele extrapolou! rapaz. Isto vai deixar a cidade em polvorosa. Com uma coisa desta não se brinca.
- Mas o Zé brinca, Bolinha.
Apesar do sol escaldante, Zé navalha estava trajando terno preto, camisa branca abotoada até o pescoço, com a cara esbranquiçada de pó-de-arroz e nos pés somente meias. Dentro do carrinho de mão que ele estava empurrando havia uma urna funerária.
Ele parou em frente do Bar Jardinzinho, abriu o caixão e tirou de lá um monte de velas e acendeu em volta do carrinho. Entrou no bar e tomou mais uma dose (mais uma porque ele já vinha virado da noite anterior) e brindou o fim da segregação das calçadas da rua Direita, entrou no caixão e dormiu por umas duas horas. Quando acordou, foi tomar mais uma talagada no bar e ficou fazendo folia em volta do caixão. E assim ficou de bar em bar durante às 96 horas dos quatro dias de carnaval.